SALVÉ, MAJESTADE!
"Dele
quase tudo se disse. É o cidadão português cuja história mais vezes foi
contada. Pode não vir nos manuais escolares, mas é no 'passa.palavra' que
gerações tomam conhecimento e se apaixonam pelo nome Eusébio. Em vida, o 'Rei'
falou à Mística em duas ocasiões (2008 e 2011), onde abriu o livro das memórias
e opinou sobre o futuro. Agora, na hora de se tornar eterno, recuperamos as
palavras e a história de vida de um mito.
Esta é
uma história com início na antiga Lourenço Marques (agora Maputo). Moçambique.
O dia: 25 de Janeiro de 1942. Abria os olhos Eusébio da Silva Ferreira. O
destino o ditaria: mais do que rebento africano, um cidadão do mundo.
Nas palavras do poeta
Veio ao
mundo numa numerosa família - benfiquista, por sinal -, mas cedo ficou órfão de
pai (o Sr. Laurindo, também ele, em tempos, jogador). A mãe era tudo para ele.
A D. Elisa, a mesma que não gostava nada que o pequeno Eusébio faltasse às
aulas para jogar futebol, mas que no momento certo o deixou voar nas asas do
sonho. A ligação entre mãe e filho prova-se na forma como, nos últimos anos de
vida, era a falar de D. Elisa que o agora avô Eusébio mais se emocionava.
Mas voltemos à Mafalala, bairro nos arredores
de Lourenço Marques: das casas de zinco e madeira às bolas de trapos, das
jogatanas de rua ao Senhor Xico, um cauteleiro que o distinguiu de entre os
amigos. Nos improvisados campos das ruas da capital, o raiar dos horizontes que
deram luz à sua infância. Diz-se que nas palavras do poeta José Craveirinha
jorrava a inspiração de meninos como Eusébio. É que aquele era o poeta que na
década de 50 incentivava os moços de Moçambique a libertarem o espírito pela
nobre arte de praticar desporto. 'Ele era uma referência', como
muito mais tarde admitiria Hilário, conterrâneo e amigo de Eusébio e um dos
melhores defesas do futebol luso.
Magrinho mas supersónico
Aos 12 anos era já
conhecido por 'Magagaga'. Supersónico. Rumou aos Brasileiros Futebol Clube.
Todos tinham alcunha de craque canarinho. Ficou 'Nené', o
brasileiro. Estreia: dois golos, vitória por 7-1 e um justo prémio de dez
escudos. Ficou até aos 15. 'Eu desde os 12 anos que sabia o meu valor.
Nunca tivemedo de jogar com os rapazes de 17 e 18 anos. Até gostava, pois só assim
perdia o medo e jogava melhor.' Hilário, que considerava como um
irmão, pois era amigo da família, rumou a Lisboa, ao Sporting. E tantas vezes
tentou convencer os dirigentes leoninos a irem buscar a pérola que ainda estava
em Moçambique... Mas estes não acreditaram, ainda que os'grandes' portugueses
tivessem muitos olheiros ali. E com resultados práticos, com Matateu e Coluna
como exemplos. Depois há a história de um irmão mais velho de Eusébio que
passou pelo Benfica, pelas palavras do próprio à Mística: 'Um
dos meus irmãos foi campeão de juniores no Benfica. A alcunha dele era 'Juju'.
Entrou num bom colégio em Tomar. Depois foi mobilizado para prestar o serviço
militar e acabou por regressar a Moçambique.'
Eusébio era bom de bola. Tentou um lugar no Desportivo
de Lourenço Marques, filiar laurentina do Benfica. Não foi aceite. Disseram-lhe
que era carne e osso. Acabou no clube rival, o Sporting Clube de Lourenço
Marques, onde jogou até aos 18 anos. Na estreia defrontou o Desportivo. Chorou
por não se sentir bem a defrontar a equipa que mais gostava. Mas ganhou por
3-0. Marcou os três golos. Num deles,'só' ultrapassou a equipa toda
e depois finalizou com classe. O que se arrependeram os responsáveis do
Desportivo! Carne e osso, não era?
A CARTA DE COLUNA
Três aqui,
dois ali, um mais à frente. Golos e mais golos. O Benfica já o tinha debaixo de
olho. Mas a concorrência era cada vez mais feroz. Em 1960, dois enviados do
clube da Luz foram a casa de Eusébio para falar com a mãe. O jovem tinha apenas
18 anos e, nesses tempos a maioridade era aos 21. A mãe foi perentória: Eusébio
podia dar asas ao sonho. Ao saber o que se passava, o Sporting tentou cobrir a
oferta, mas a palavra estava dada ao Benfica. Os rivais tentaram tudo, mas D.
Elisa manteve a palavra. A ela muitos milhões de benfiquistas podem agradecer.
E a Coluna também. Que recebeu uma carta de D. Elisa. Que cuidasse do seu
menino como se fosse seu filho. Mário Coluna falava muito dessa mesma carta.
Levou-a à letra. D. Elisa agradeceu. Tímido e franzino, chegou a Portugal em
Dezembro de 1960. Num país triste e cinzento, dominado pela ditadura, Eusébio
era um jovem em busca de glória no clube do povo, da democracia, onde
despontava uma geração de valores que se veio a revelar a mais frutífera de
sempre do desporto europeu. Para o jovem Eusébio existiu um primeiro inimigo. O
frio. Ele que estava acostumado aos 40 graus de Moçambique. No dia seguinte à
chegada acompanhou a equipa à Covilhã apenas para ver jogar os craques. Vitória
por 1-3 e um Eusébio na bancada gelada, mas entusiasmado. Só que o frio...
podia ter estragado tudo. Chegou a ligar à mãe dizendo que ia regressar. Entra
na história Coluna. Tornou-se padrinho protector do jovem conterrâneo. Deu-lhe
forças e uma palavra amiga. 'Por isso lhe agradeço a ele, mas também
aos falecidos José Águas, Germano e Costa Pereira. Homens que me ajudaram.
Felizmente, eu sempre meti na minha cabeça os conselhos que eles me davam. Hoje
não me arrependo de os ter ouvido', contou-nos em 2011.
Pacientemente aguardando o ouro
Eusébio vivia
no Lar do Jogador, no Estádio da Luz. E ali protagonizou uma autêntica novela.
Não podia jogar. O Benfica chegou a acordo com o antigo clube do moçambicano,
mas o Sporting inviabilizou a concretização do negócio, pressionando a sua filial
laurentina. E começou a 'perseguir' Eusébio. Benfica e
Sporting travaram uma intensa luta estratégica e jurídica. Todos o queriam e
ele não jogava. Em 2008 disse em entrevista à Mística, entre
sorrisos:'Tenho 66 anos e mesmo assim há sportinguistas que dizem que fui
'raptado' pelo Benfica. O Sporting é que queria 'raptar'.' Era o forte
sinal de que se estava na presença de alguém fora de série. Mas como lidaria
ele em campo com tanta pressão e tanta expectativa? Da polémica em polémica, de
argumento em argumento, Eusébio permaneceu fiel ao Benfica ainda antes de se
estrear de águia ao peito e, apesar de ter estado parado entre Dezembro de 1960
e Maio de 1961, não retrocedeu na palavra que ele e a sua mãe, D. Elisa, tinham
dado aos persistentes dirigentes 'encarnados'.
Em Maio de 1961, o Sporting laurentino,
temendo 'perder tudo', aceitou a verba combinada com o 'Glorioso',
enviando para o Benfica a sua 'carta de desobrigação'. Finalmente
Eusébio era do Benfica. E o presidente da direcção, Maurício Vieira de Brito,
conseguia o que queria: o jogador que viria a mudar a face do futebol
português. Primeiro treino: o técnico Béla Guttmann virou-se para o adjunto
Fernando Caiado e disse: 'É ouro, é ouro' Os colegas
perguntavam-se quem seria o sacrificado. Germano usava o humor: 'Estou
safo, sou defesa.' Apesar de menino, Eusébio mostrava ser uma força da
Natureza e já um grande jogador. E também tinha confiança. Certo dia disse ao
seu colega de quarto, José Torres (que há três anos rodava nas reservas), que
tinha valor para jogar no Benfica e que no dia em que entrasse na equipa não
mais perderia a titularidade, porque era melhor do que todos os colegas. Não
disse apenas... Fez.
Quando Pelé quis saber quem era
Chegados a
23 de Maio de 1961, a estreia. Um jogo de reservas frente ao Atlético, em que o
Benfica venceu por 4-2. Marcou três. E estava com febre... Estreou-se na equipa
principal em 1 de Junho de 1961 (sim, poucos dias depois), na derrota por 1-4
no campo dos Arcos, em Setúbal, com o Vitória de Setúbal, na 2.ª mão dos
quartos-de-final da Taça de Portugal, marcando o golo do Benfica, mas falhando
um penálti às mãos de Félix Mourinho, pai de José Mourinho. Foi o primeiro dos
quatro penáltis falhados na sua carreira. Uma estreia numa equipa de recurso,
pois o poder federativo obrigou o Benfica a jogar uma eliminatória da Taça de
Portugal, enquanto a equipa principal viajava de Berna para Lisboa, depois da
na noite anterior, em 31 de Maio, ter conquistado a Taça dos Clubes Campeões
Europeus após vencer na final, por 3-2, o Barcelona.
Pouco depois, no primeiro jogo no campeonato,
a 8 de Junho, marcou na derradeira jornada e festejou o primeiro título
nacional ao serviço do Benfica. Tinha 19 anos. No Verão participou no Torneio
de Paris. Marcou na vitória por 3-2 sobre o Anderlecht. Mas deu nas vistas na
final. Começou como suplente. Quando entrou, já o Benfica perdia 4-0. Marcou
três golos. Pelé quis saber quem era...
Em Outubro de 1961, Fernando Peyroteo
chamou-o à selecção, e assim pôde cumprir o sonho de treinar ao lado de
Matateu, mas, devido a lesão, nunca chegaram a jogar juntos. Na estreia,
derrota por 4-2 com o Luxemburgo. Marcou um golo. Depois, a 25 de Outubro,
Portugal perdeu por 2-0 em Wembley, num jogo a contar para a qualificação para
o Mundial do Chile. Eusébio jogou bem, atirou duas bolas aos ferros e viu-se no
dia seguinte apelidado de 'Pantera Negra'pela imprensa britânica.
Em Setembro jogou inesperadamente a decisão
da Taça Intercontinental ao lado de outro miúdo, António Simões. É que depois
de vencer na Luz por 1-0 o Peñarol, o Benfica sucumbiu por 5-0 em Montevideu.
Na finalíssima, novamente no terreno do adversário, Guttmann chamou os miúdos.
Eusébio ainda deu o empate ao Benfica com um míssil. Um penálti escandaloso
decidiu.
A glória... de ter a camisola de Di Stéfano
A estreia na Taça
dos Campeões aconteceu em 1 de Novembro de 1961. Empate a um golo em Viena e
depois goleada por 5-1 na Luz. Eusébio marcou o quarto. Mas Dezembro traria a
primeira de seis operações ao joelho esquerdo a que se soma mais uma ao
direito. Recuperou e ainda foi a tempo de ajudar à glória europeia.
Eusébio cedo mostrou que era um futebolista
sem igual, conquistando a titularidade na equipa e a confiança dos colegas e
técnicos. E a cereja no topo do bolo sucedeu na final de Amesterdão de 1962,
quando o Benfica se sagrou bicampeão europeu à conta do 'gigante'Real
Madrid. No final, 5-3 para o Benfica, com o jovem avançado em plano de
destaque. Levado em ombros, não se agarrou à taça, mas sim... à camisola de Di
Stéfano, seu ídolo de sempre. No final, ouviu o elogio do craque madrilista,
tal como se habituou a ouvir de outros da sua galáxia, tais como Pelé ou Cruyf.
'Ganhar ao Real foi fantástico, mas eu só queria a camisola do Di Stéfano. No
final, disse-me que eu teria um grande futuro. Imagine o que é ouvir isso do
seu ídolo! E eu perguntei-lhe como poderia ser grande. Ele disse-me que tinha
de trabalhar e ouvir os conselhos dos mais velhos. Meti isso na cabeça',
contou-nos.
No ano seguinte, derrota na final com o
Milan. Eusébio marcou, sofreu falta atrás de falta e terminou o jogo
inferiorizado, tal como Coluna, que fazia figura de corpo presente junto à
faixa.
Em 1964/65 brilhou nos 5-1 ao Real Madrid.
Seguiu-se a maldita final com o Inter. Mais uma perdida, mas, imagine-se, em
San Siro, casa dos Italianos. Nesse ano de 1965, a 8 de Outubro, casou-se com
Flora. Juntos até final, geraram as filhas Carla e Sandra. E foi ao ombro de
Flora que chorou de alegria ao saber que tinha sido distinguido como melhor
jogador da Europa também nesse ano.
Golos para a História
Atleta notável,
jogando em apoio aos avançados ou como ponta de lança, não tinha limitações: de
cabeça, com os pés, de longe, de'bola parada', driblando ou
rematando, era um avançado completo e imprevisível. Conseguiu driblar
meia equipa contrária ou rematar de longe sem preparação mas com uma precisão
incomparável. Nos lances de 'bola parada' era fulminante em
livres directos ou grandes penalidades, a maior parte das vezes a 'cobrar' faltas
cometidas sobre si, a única forma de o parar.
E foi num livre que marcou um dos melhores
golos da carreira. Em Turim, frente à Juventus (meias-finais da Taça dos Clubes
Campeões Europeus, edição de 1967/68), Eusébio marcou um golo de livre a mais
de 40 metros de distância da baliza. Antes do remate, os adeptos da'Vecchia
Signora' riram-se perante a invulgar decisão do 'Rei', mas
depois silenciaram-se quando o esférico entrou no fundo das redes. De resto, os
livres certeiros passaram a ser rotulados de 'livres à Eusébio'.
No entanto, foi um golo de jogada corrida,
frente ao então desconhecido La Chaux-de-Fonds (1964/65), que o génio considera
ter sido o seu melhor de sempre. Um golo também especial pela forma invulgar
como o guarda-redes adversário reagiu à célebre jogada de Eusébio, realizada a
9 de Dezembro de 1964.
'Fiz uma tabela com o Simões e, sem deixar a
bola cair no chão, passei-a por cima de dois defesas. Após ter marcado o golo,
reparei que o guarda-redes da equipa adversária começou a correr na minha
direcção. Fiquei perplexo. Pensei que ele me queria fazer alguma coisa de mal.
Mas não! Ele queria apenas cumprimentar-me. Nunca tinha visto uma coisa assim!
Foi pena a televisão não ter dado a devida importância a esse golo. Já marquei
muitos golos que ninguém pensava ser possível, como, por exemplo, aquele diante
da Juventus, mas para mim aquele marcado ao La Chaux-de-Fonds foi o melhor de
todos.' No entanto, Eusébio não foi só o maior
finalizador do futebol português como também grande futebolista.
Delineou e executou milhares de jogadas,
servindo em centenas delas os colegas de equipa melhor colocados, estando por
isso directamente ligado a milhares de golos. Ao contrário de outros, deve ser
o futebolista mundial que 'esteve' em mais golos, quer a
marcar, quer a fazer o último passe ou assistência.
Sempre em frente
Como nos
confessou em 2008, o seu caminho 'era sempre em frente'. 'Delineei
um caminho para a minha carreira e nunca me desviei dele.' Ficam os
golos, as palavras e as imagens. A ir buscar uma bola ao fundo das redes,
querendo mais após um golo. Ou a perna esquerda fixa e esticada na vertical e a
direira dar tudo de si rumo à glória, algures entre um encontro com a própria
cabeça curvada e mais um remate devastador. Os braços são pura poesia. Parecem
delinear o caminho certeiro do esférico. Uma dança que com ele nasceu. Uma
ciência, uma poesia, talvez pura matemática. Era diferente de tudo o resto.
Sagrou-se melhor marcador de inúmeras
competições, com destaque para o Mundial de 1966, em Inglaterra, na Taça dos
Clubes Campeões Europeus, em 1964/65, 1965/66 e 1967/68, e em sete Campeonatos
Nacionais da I Divisão, nas épocas de 1963/64, 1964/65, 1965/66, 1966/67,
1967/68, 1969/70 e 1972/73 (sete campeonatos, cinco deles consecutivos, ambas
as marcas recordes). Foi também Bota de Ouro (melhor marcador europeu) em
1967/68 e 1972/73; e Bola de Ouro (melhor jogador europeu) em 1965, ano
anterior ao da realização do Mundial em Inglaterra onde brilharia intensamente.
Pelo Benfica conquistou 22 títulos oficiais:
campeão europeu de 1961/62; 16 nacionais com 11 Nacionais da I Divisão (é o
futebolista português com mais títulos) e cinco Taças de Portugal; além das
cinco Taças de Honra de Lisboa. Certo dia perguntámos-lhe se concordava que
houvera um Benfica antes e um Benfica depois de Eusébio. 'Antes de mim
já houve um grande Benfica, com aqueles que venceram a Taça Latina. Depois de
mim, também foi um Benfica forte, com tantos títulos e finais. Agora, o que eu
acho é que a grandiosidade vinha da força adjacente a uma base que era também a
Selecção Nacional', respondeu.
Orgulho de Portugal
Na Selecção
Nacional foi internacional em 64 jogos, marcando 41 golos, capitaneando-a em 16
encontros. Não existiam adversários facilmente goleados. Existiam, sim, grandes
potências no futebol europeu. E ainda assim Eusébio marcava e marcava...
Exemplo? Algo de que pouco de fala. Os sete golos na caminhada até ao Mundial
de 66. E na decisão, em pleno terreno da fortíssima Checoslováquia, Portugal
reduzido a dez elementos e o golo que valeu a qualificação a surgir dos pés
do 'Pantera Negra' após uma cavalgada de mais de 70 metros.
Monstruoso.
No Mundial de 66, entre os 'Magriços',
foi o melhor marcador, ficando para sempre nos anais da história do futebol
mundial o modo como 'virou', no encontro com a Coreia do Norte, um resultado
desfavorável de 0-3 para uma vitória por 5-3, marcando quatro golos. No total, nove golos.
As lágrimas pela eliminação nas meias-finais
frente à Inglaterra, no Mundial de 66, contrastaram com a forma efusiva como
viveu todo o Mundial. Um jogo que se devia ter realizado em Liverpool, 'casa'
portuguesa, e acabou por, sabe-se lá porquê, ser transferido para
Londres. No final de um jogo mal perdido, Eusébio olhou os céus, perguntou a
Deus 'porquê' e chorou compulsivamente. O inédito terceiro lugar luso soube-lhe
a pouco. 'Era em Liverpool que tínhamos de jogar e era aí que nos
sentíamos em casa. Foi pena que tenhamos ido jogar a Wembley, após uma viagem
muito má, sacrificando-nos tanto para nada. Lembro-me que perdi quase 3,250 Kg
nesse jogo. Demos tudo e sentimo-nos injustiçados. Daí ter chorado no fim,
olhando para o céu, dizendo que mal fiz meu Deus'. Nunca mais alguém
conseguiu marcar tantos golos numa fase final de um Mundial.
Do fair-play à máquina
rebentada
Final da
década de 60. Levou o Benfica à nova final europeia. Ironia dos destinos:
defrontar o Manchester United em Wembley. Derrota por 4-1 no prolongamento. Mas
na imagem de muitos o falhanço em cima do minuto 90 e posterior cumprimento ao
guardião contrário. A história pelo próprio: 'Tive o golo da vitória nos
pés, quando faltavam dois minutos para o fim, mas joguei com uma lesão que não
acredito suportasse nos dias de correm. Eu só devia andar, e joguei. E não
podia chutar com o pé esquerdo, pois se a bola me tivesse chegado ao pé direito
eu tinha feito o golo.' Com o passar dos anos perdeu o fulgor -
malditas lesões -, mas já trintão conseguiu, com Jimm Hagan, atingir a marca
dos 43 golos no campeonato, sendo mais uma vez Bota de Ouro. E na Minicopa de
1972 mais uma manifestação de classe internacional. Portugal perdeu ao cair do
pano da final. Marcou, em 31 de Março de 1975, o seu último golo pelo 'Glorioso',
o n.º 638, no Estádio Colombes, em Paris, quando o Benfica venceu por 5-1 o FC
Porto numa festa de homenagem aos emigrantes. Certo dia perguntámos-lhe: qual
foi o melhor Eusébio? 'Em todos os jogos aparecia o melhor Eusébio.
Dava o máximo', atirou. Quisemos saber mais: e se fosse hoje,
Eusébio? 'Era melhor ainda. Em termos físicos, trabalhava muito e as
botas que eu calçava pesavam muito mais. A bola, a camisola, o calção... tudo
está diferente. Não há comparação. Lembro-me de que há uns anos fomos a um
programa de TV e estavam lá alguns dos melhores jogadores de sempre. E eles
tinham uma máquina onde podiam medir a força do nosso remate. Só sei que quando
chegou a minha vez a máquina rebentou e lá se foi o programa. Não há ideia da
velocidade que a bola ganhou. Acho que hoje, com esta bola, conseguiria marcar
livres do meio campo desde que o vento soprasse a favor.' Como diria Mourinho,
mais tarde, Eusébio seria 'Monstruoso'.
Incomparável
Efectuou o
614.º e último jogo da águia ao peito em 18 de Junho de 1975, num encontro
particular em Casablanca, com a Selecção da CAF (Confederação Africana de
Futebol). Nem nesse jogo se enervou. Dizia-nos, em 2008, que nunca na carreira
se mostrou ansioso: 'Nunca me enervei a jogar futebol, porque senti
sempre prazer. Só me comecei a enervar quando deixei de jogar'. Um registo
histórico, numa despedida no continente africano, onde nascera há 33 anos.
Nesses últimos anos de carreira jogou no Estados Unidos, no Canadá, no México.
Ganhou títulos, marcou golos e, acima de tudo, comprovou a popularidade que o
perseguia. Era um deus chegado a um novo mundo futebolístico. Valeu pela experiência
desportiva e social.
Dizia-nos, de forma nostálgica, em 2011:
'Não posso dizer que sou o mesmo que chegou a
Lisboa há 50 anos, mas a mentalidade é igual: respeitar as pessoas, ser alguém
simples e não desiludir quem gosta de mim. Sou do Benfica mas respeito os
adeptos dos outros clubes.' Palavras que aplicou ao longo da vida.
Por isso, no pés-carreira manteve sempre o carinho de todo o mundo do futebol e
até mesmo daqueles que não acompanhava o desporto-rei. A postura a humildade
fora do campo foram, agora sabe-se, a sua última grande vitória. Um triunfo
que, todos o sabem, está ao alcance de poucos. E essa é também uma coroa
incomparável. Mais: 35 anos depois de ter deixado de jogar ainda é apelidado
de 'Rei' nos quatro cantos do mundo. Vide a manchete do South
China Morning Post, um reputado jornal de Hong Kong: 'The
King is dead' (O Rei está morto). Uma prova de que o principal golo ou
título de Eusébio foi ter colocado Portugal no mapa numa altura em que o País
vivia na penumbra. Podemos até ir mais além: que outro jogador nascido em
África, o mais mágico mas também humilde dos continentes, fez o que Eusébio fez
no futebol mundial? E que jogador com quase duas mãos-cheias de terríveis
operações aos joelhos se destacou no desporto que mais faz vibrar o planeta?
Por isso, fúteis e estéreis daqueles que se dignem compará-lo com outro
qualquer jogador, por mais valioso e merecidamente respeitado que seja. Há que
perceber contextos sociais, desportivos, humanos e globais antes de se entrar
em comparações para preencher horas televisivas e colunas de jornais. Façamos
um exercício: o que se ganha em comparações sobre Pelé, ou Maradona, ou Di
Stéfano? Zero. Cada um, uma história. Cada um, um herói à sua maneira. E
Eusébio, tal como os grandes jogadores de novo milénio, merece o respeito de
ser encarado como 'único'. Mais: ele foi um fenómeno global antes
da globalização. Eusébio foi uma era, é um mito. Não apenas o melhor, ou não. É
único. Outra forma de pensar seria reduzir e retirar valor a tudo o que representou
e representa.
Homenagem em vida
Em 26 de Março de
1982, a distinção suprema do Benfica: a Águia de Ouro. Em 25 de Janeiro de
1992, no 50.º aniversário, foi inaugurada a sua estátua, em frente ao estádio
onde alcançou feitos inigualáveis. Mas foi na presidência de Luís Filipe Vieira
que teve a justa e respeitosa visualização do quanto o clube lhe agradecia o
que ele representava década após década. Tornou-se parte activa do clube, teve
o merecido suporte financeiro e foi a imagem do Benfica nos mais diversos
momentos, sendo mesmo lançada a Eusébio Cup, em sua honra. O homem pode ter-nos
deixado neste início de 2014, mas o nome será sempre iluminado pela admiração
de quem respeita o desporto e, acima de tudo, o verdadeiro espírito dos
campeões Eusébio vive.
O texto termina aqui para os que o vão ler.
Mas sobra um último parágrafo, que queremos partilhar apenas com uma pessoa.
Referimo-nos a si, Flora. Em 2008, no decorrer de uma entrevista que o'Pantera
Negra' deu à Mística, perguntámos a Eusébio quem tinha
sido a pessoa mais importante da sua vida. Decerto que sabe a resposta, Flora,
pelas palavras que na intimidade o 'Rei' lhe dirigiu ao longo
de toda uma vida, mas deixe-nos humildemente transcrever o que ele nos
respondeu: 'A pessoa mais importante da minha vida é a minha esposa. A
Flora. A minha grande paixão. Uma mulher fora de série. Foi fundamental o seu
apoio na minha carreira. A cada segundo. Este sempre lá. E continua a estar. É
uma grande mulher!'
(...)"
Ricardo Soares, in Mística
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